segunda-feira, 25 de maio de 2020

A Politica da Música: Conflitos Armados e Concertos da Paz



Bob Marley unindo as mãos dos opositores políticos Michael Manley e Seaga
  Uma história sobre paz tendo origem numa bala no cano de um revólver? Claro que sim. Se por um lado o estopim de uma guerra mundial foi uma bala no peito de um arquiduque, uma mesma tentativa de assassinato foi o princípio de uma trégua, guiada pelo espírito de um músico que triunfou sobre a Babilônia. A história pela música e a música pela história: essa dualidade se faz presente onde se tem pegada humana. Essa socialização advinda de outras eras sobrevive ao tempo no mesmo instante em que se faz e se refaz. E por mais estranho que pareça, a história se apresenta com múltiplos sentidos e um único tiro disparado pode ter inúmeros significados, indo muito além da comum violência do século XX.

     Esse disparo, (até hoje um mistério) direcionado a Bob Marley em 1976, foi  responsável por levar a luta política (antes concentrada nas ruas dos guetos de Kingston) ao campo musical, principalmente por conta dos concertos promovidos e do caos social que varria o país. "Bob Marley e os Wailers", os maiores expoentes da música jamaicana viviam o auge de suas carreiras, e, como figuras muito influentes na ilha se tornaram o alvo perfeito para que partidos jamaicanos como JLP e o PNP tentassem utilizar a imagem da banda para promover seus ideais políticos.
O PNP acusava Seaga de afinidades com a CIA através de pichações irônicas 


 Após a independência jamaicana, as decisões políticas do país das Antilhas passaram a  se concentrar nos primeiros-ministros. Na década de 70, o lider do PNP (Partido Nacional Popular) Michael Manley, eleito como primeiro-ministro tomou uma série de reformas socioeconômicas que visavam diminuir a distância do povo com o parlamento, buscando diminuir as desigualdades, e o consagrando como um lider dinâmico e popular. Tais medidas incomodaram a oposição conservadora, encabeçada pelo lider do JLP (Jamaica Labour Party) Edward Seaga, que pretendia criar uma instabilidade no governo de Manley, o associando ao comunismo, (já que Manley tinha o apreço de Fidel Castro) e criando subterfúgios para incriminá-lo das mais variadas formas. O alarmismo de Seaga sobre uma ilha que poderia se tornar "vermelha" como Cuba em plena Guerra Fria, se faz chamar atenção dos Estados Unidos, que prontamente se instalou no país através da CIA. Os guetos jamaicanos se tornaram palco de verdadeiras chacinas, com inúmeras facções armadas financiadas pelos EUA. Tal terrível época foi imortalizada na canção "War" de Marley, que denunciava os horrores da impetuosa violência urbana.


Michael Manley e Fidel Castro
 A ferocidade nos bairros de Kingston proporcionaram aos políticos atuações pretensiosas de total impunidade, estando protegidos por conta das relações de poder. O caos e o horror tomam conta da Jamaica e com a queda de turistas a economia da nação despencou. Os rastafáris, já bem estabelecidos à essa altura, enxergam a ilha como uma caixa de repercussão bíblica, já que o retorno do Messias Preto (Haile Selassie) desencadeará o "apocalipse", e enquanto babilônia afunda, o homem preto deve se unir e sair daqueles entraves para retornar a África, o seu verdadeiro lar. Diferentemente dos hippies que pregam o "peace and love", os rastas farão através da música a unificação do povo preto, tendo o repatriamento africano no horizonte. 

   Bob Marley como um homem adepto do Rastafári, utilizava nas suas canções, maneiras para buscar essa unificação em Jah, no amor e na compreensão dos homens. Tamanho era o seu alcance na Jamaica que a área em que morou era considerada um território neutro entre as facções. Enquanto se digladiavam em nome de homens brancos e ricos nos guetos, na região de Bob comungavam a irmandade rasta, fumando erva e consagrando a Jah. O atentado a vida de Marley, dois dias depois do concerto "Smile Jamaica" levanta questionamentos acerca de quem foi o mandante. O partido conservador acusa o PNP de tentar criar um mártir com a morte de Bob, e o lado mais progressista acusa Seaga em função do caráter subversivo do cantor que pareceu levantar bandeira ao PNP. O fato é que por razão de tais acontecimentos, os concertos foram tomados por ideais políticos, e Bob, por causa do atentado à sua vida preferiu se exilar em Londres. Depois de longos processos violentos, as milicias do JLP entraram em acordo com o PNP, promovendo uma trégua, justamente porque um dos líderes era amigo pessoal de Bob, (Claude Massop) e o mesmo tinha pedido para ele se apresentar no concerto "One Love Peace Concert" com objetivos de levar a paz na Jamaica. Este concerto, rodeado pela incerteza da presença de Bob ao palco contou com o compositor e mais outros 15 artistas, incluindo Beres Hammond, Jacob Miller e Inner Circle. Em sua apresentação, Bob celebrou a paz e louvou a Rastafari, e um acontecimento específico e extremamente simbólico aconteceu: após chamarem os dois opositores Manley e Seaga ao palco (o que não estava planejado) no solo da música "Jammin", um trovão cai sobre o palco enquanto Bob dançava:







    Após esse feito de caráter messiânico e minimamente xamânico, ele chama os representantes dos partidos e estabelece um dos momentos mais atemporais e icônicos de sua carreira, unindo as mãos dos dois em celebração a Jah, sendo ele a figura do meio. Alguns fazem analogia desse momento com Cristo crucificado com os dois ladrões ao seu lado. O reggae naquele dia, celebrou a paz sem segundas intenções.

    Portanto, a realidade se mostrou um pouco mais dura com a Jamaica posteriormente, e com a eleição de Seaga em 1980 a violência voltou na ilha. A morte duvidosa de Claude Massop e outros acontecimentos geraram a morte de mais de oitocentas pessoas. A mensagem conservadora de Seaga tomou força nos anos 80, onde se fez presente ferozmente a miséria social e a corrupção. No entanto a Babilônia nunca conseguiu erradicar as almas rebeldes presentes entre aqueles que foram escravizados. O reggae rasta sobrevive tradicionalmente através dos corações dos homens pretos, que denunciam através da musica o grito de dor daqueles que ainda sofrem no inferno tropical das Antilhas. 

    A música, a tradição oral, os ritos, os costumes, e as expressões culturais de uma determinada população podem mudar os rumos de uma nação justamente porque elas possuem uma mensagem, ela não é apenas mero fruto da indústria sonora. O enquadramento que a sociedade capitalista tende a criar no cenário musical não consegue dar conta do vigor que o Terceiro Mundo possui em sua fibra, e que resiste em entregar a sua identidade. Assim como Marvin Gaye, Michael Jackson, Nina Simone, James Brown, entre tantos outros artistas negros, Robert Nesta Marley marcou seu nome na história da música mundial por questões que vão além da própria música, englobando a mensagem rasta e preta, levando a cultura Jamaicana aos quatro cantos do mundo.

   Os álbuns selecionados para esse post serão o "Exodus" de 1977, e o "Survival" de 1979. A importância desses dois compactos é sumária dentro da perspectiva que tratamos no texto.  Exodus trata em denunciar a violência que ele e seu povo sofreu em seu país. foi concebido durante o seu exílio em Londres e foi considerado o melhor álbum de música do século XX pela revista TIME, e também entrou na lista dos 200 álbuns definitivos do "Rock and Roll Hall of Fame". Já "Survival" contem faixas que tratam justamente sobre a unificação do povo preto no continente africano e possui faixas como a  "Babylon System", "Africa Unite" e "Zimbabwe", sendo este ultimo um hino dedicado à recém independência do país. 



                     






Nenhum comentário:

Postar um comentário